Capitais económicos e culturais irrelevantes

Desde Marx, até Simmel e Bourdieu, a importância do capital estive sempre presente como preocupação fulcral da nossa sociedade. Seja o económico (o único importante na visão marxista), o social ou o cultural (Escola de Chicago e seu legado e seguidores), no que todos concordam é que é a base do capital que os indivíduos interagem em sociedade. Bourdieu vai ainda mais longe, afirmando que os próprios gostos são construídos socialmente, dependendo estritamente do capital dos indivíduos.

A seguinte experiência fez-me duvidar da linearidade desta concepção. Indivíduos com um capital cultural elevado, mesmo com um presumível capital económico razoavelmente alto, demonstram uma total incompetência na interacção com o resto da sociedade.

Lembro-me de olhar para o indivíduo que estava confortavelmente sentado a minha frente, lendo distraidamente um livro (cujo título ou carácter desconheço) no seu Kindle. Pensei, pelo aspecto físico e vestuário, que se tratava de um professor, ou de alguém com uma certa superioridade cultural. Imaginei, automaticamente, uma grande biblioteca pessoal, e muitas histórias contadas aos netos. Esta minha suposição mantém-se, embora a empatia automática que senti, desvaneceu aos poucos.

Ao meu lado, também pacientemente de pé, estava uma senhora de meia-idade com dificuldades em se equilibrar, carregando uma mala cor de laranja volumosa, no ombro esquerdo, o que me levou a pensar imediatamente que seria canhota. Estava provavelmente, e pelo teor da conversa, a voltar do seu trabalho. A mala estava, inconscientemente, a bater nos ombros do indivíduo Kindle, sempre que a estrada não se apresentava lisa.

Observei, em várias alturas, expressões não-verbais de desconforto da parte do passageiro sentado. “Um olhar diz mais do que mil palavras” me veio a cabeça logo. A insistência do acto, como também a intensidade do mesmo, deixou-me numa primeira fase bastante inquieta. Na minha cabeça, estava já a elaborar uma conversa com o indivíduo Kindle, para que este se conformasse com a posição em que estava, ou então que, cordialmente, advertisse a senhora para esta tomar medidas ajustadas. Contudo, mantive-me quieta e calada, por não haver necessidade para tanto.

A senhora da mala cor de laranja desceu escassos minutos depois, na que foi, para mim, a primeira paragem. Tocou-me a mim estar no lugar antes ocupado por ela. Eu também tenho uma mala bastante volumosa. E também eu sou canhota e carrego a mala no ombro esquerdo. Tentei portanto evitar os mesmos olhares, posicionando-me ligeiramente diferente.

Aqui começa a minha reflexão, apenas sendo fortificada por uma terceira participante, que, para a infelicidade dela, estava sentada ao lado do indivíduo, lendo uma revista. Por motivos que desconheço, e sobre os quais não vou fazer suposições, esta pessoa decidiu separar os cortinados da janela ao lado da qual se encontrava, deixando assim entrar o sol, em toda a sua potencia, o que dificultava a leitura coerente do livro em formato digital, pois o monitor ficava inundado numa forte luz. O indivíduo rangeu, mexeu-se desconfortável, e em seguida atirou para cima da pessoa, o mesmo olhar insuportavelmente intenso e amargo. Para a minha ínfima felicidade, a visada mostrou-se superior, ignorando-o completamente.

O espaço público implica convivência, mesmo que seja feita num silêncio cúmplice. Ao estar num lugar público, um indivíduo sujeita-se, conscientemente, a estar no meio de vários indivíduos, com quais comunica ou não. É uma convenção simples, obrigatória e implícita de se estar, por exemplo, num autocarro. O sociólogo Zygmunt Bauman enquadraria esta experiência, provavelmente entre uma coexistência estacionária (exemplo alternativo seria uma sala de espera ou uma paragem de autocarro) e a meta coexistência (da aparência matricial) exemplificada em bares,praias ou locais públicos, sem compromisso futuro sobre as relações ali estabelecidas.
Quando o dito autocarro esta a abarrotar de pessoas, o individuo devia assumir o risco de ser, mesmo que indirectamente, “incomodado”.

Referencia Bibliografica:

Bordieu. P (2011), Espaço Social e Géneses das Classes,in Poder Simbólico.Lisboa,Edições (entre outras)

Simmel. G (2004) , Metrópoles e vida mental, in Fidelidade, gratidão e outros textos. Lisboa , Relógio D´água (entre outras)

Marx. K & Engels (1848), Manifesto do partido comunista, (entre outras)

Bauman. Z (1995), Formas de Coexistência, in Ensaios sobre a Moral Pós-Moderna. Lisboa, Relógio D´água (entre outras)

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